terça-feira, 27 de novembro de 2007

Vodka. Ouvi-te, então. Enquanto gesticulavas o tamanho das romãs. Ao lado, na foto, lá estavam alinhadas, grandes, efectivamente muito grandes, em cima de uma espécie de pequena prateleira. O seu tom rubro dava com a decoração do bar e tornava tudo fantasticamente acolhedor, como se fosse feito de propósito para abafar o frio. O tom daquelas grandes romãs russas. E dizias-me que ali tudo era grande. Também os limões que estavam dentro de um tubo de vidro, cheio de água - que eu imaginei cheio de vodka. E tu, continuavas a gesticular o tamanho grande desses frutos. A seguir foste buscar o gorro de pele. Ficava-te bem. Dava-te um toque sorridente. Feliz.
(...)
Peguei depois no telefone para reconfirmar tudo.
Afinal, não era bem assim. Respondeste-me que tinha uma parede, cheia até ao tecto, de frascos com limões. E não concordaste com o resto... que para mim daria um cunho genuinamente russo ao quadro. «Talvez vodka... Achas?!» Acho. Porque não? Seria uma visão ainda mais doce, digamos assim.

quinta-feira, 22 de novembro de 2007

Regresso. Há sempre um caminho escondido que nos guia. Mesmo a dormir, ou quando negamos a evidência, o rumo é certo. Tal como tudo tem um fim.

quarta-feira, 31 de outubro de 2007

(...)

terça-feira, 30 de outubro de 2007

Princípio. Foi assim que este blog começou, em Setembro de 2006:
Se fosse adivinho e olhasse para a minha mão podia perfeitamente concluir que poucas linhas esgotam tudo o que é importante.
A minha filha e Lagos - como ela nunca conheceu. Dois títulos que habitam o meu Sul: A Menina do Mar e A Fada Oriana. Duas histórias eternas. Só uma pessoa chamada Sophia as poderia ter escrito. Este Verão fui buscar a minha filha a Salema, onde passou uns dias com uma amiga. Cruzei-me então com Lagos, ao fim de muitos anos de afastamento. Mudou muito. Mas continuo a ver lá 'A Menina do Mar', sentada na esplanada ao lado da Messe. A conversar com o meu pai.
Barril. Não me identifico sem mar. Por isso, tenho um que é só meu. É lá que lavo a alma.
Fia. Um dia destes vou contar-te, Fia, como és importante para mim e como me chateia não conseguir sentar-te duas horas à volta de um peixe grelhado. Acho que vais saber isso aqui. Como também ficas ao corrente de uma ironia do destino: a Bé, irmã do meu amigo Miguel, contou-me este Verão uma história de uma dentada de um cão que foi, nem mais nem menos, passada em tua casa, em Sesimbra, há 30 anos. Já agora, também me chateia não saberes que a única coisa que sei fazer verdadeiramente bem é mesmo grelhar peixe.
Mãe. Sinto falta do abraço que deveria dar à minha mãe. Acho que é desta que vou fazer uma amplicópia da foto em que foi a mulher mais bonita do mundo, bem torrada do sol. A típica morena, brasa, dos anos 50. Sorriso feliz e cintura de vespa. Ninguém até hoje dedicou tanto carinho ao levantamento fonético e linguístico dos cuícos, nem encarou a pesca do atum - que hoje já não existe - de forma tão apaixonada.
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O melhor céu. É lá que me lembro de todos. Quando me delicio a beber o meu Bombay. Continuam lá todas as constelações que conheço desde muito miúdo. É lá que está a caça às cobras com o Henrique. É lá que recordo o meu pai e o Rui, e o Jaime e as bebedeiras na ria. As tardes de poeira e os infindáveis dias de praia. O universo perfeito em formato de filme 3D. É lá que sempre penso em Azeitão, na minha irmã e no Alberto, na Inês-princesa-dos-olhos-azuis-como-ninguém-tem e no João-Coração-de-Leão. Bem perto fica o Lacém, e a memória de quando ninguém lá ia. Bem perto também estão os perdigueiros - o Tejo e o Nero. E tudo o que dava para voltar a ser repetido. Ali num terraço bem no centro do meu universo. Na Casa Azul. Em Cacela-a-Única, que para mim só há uma.
(...)
Fecho a mão?
Fronteira. Os sapos invadiram a relva, já fresca e verde como de Inverno. Enquanto as marés, mais cheias que nunca, desgastam o areal, escavando-lhe paredes de quase um metro. Agora, nem os pescadores ocupam a praia. Mas a água teima em manter-se tépida.
Ao fim de duas horas de caminhada, fico no meio do silêncio só quebrado pelas vagas, pela rebentação e pelo vento. A Norte, as nuvens ameaçam mau tempo. A Sul, algumas velas cheias competem em bolinas, com os mastros a inclinarem o possível, ziguezagueando nas sucessivas mudanças de bordo. O ar ainda tem restos do calor do Verão.
Deitei-me no areal e fixei o céu. Tive paz durante meia hora.
Cedi à curiosidade de ver o fim do dia nos areais de Canela. Nas praias de areia suja. Um bom pretexto para atestar o depósito a preços mais baixos. No Outono, as praias da Andaluzia ficam despovoadamente tristes e perdem toda a vida que os espanhóis preenchem com barulho e cheiros a paelha, churros, cerveja, regaliz vendida em quiosques e gambas fritas. A Espanha vazia é um conceito desprovido de conteúdo. Àquela mesma hora, todas as praças mayores estariam repletas da gente que faltava ali, naqueles areais.
De regresso, o pôr-do-sol fez-me uma surpresa. Foi mais um daqueles memoráveis. Com o céu cheio de nuvens, enquanto conduzia, acompanhei a sucessão de tons espalhados pela gigantesca tela de supostos nimbos, cúmulos e massas de castelos carregados de chuva. Entre estes colossos do ar, aqui e ali, as aberturas directas para o céu, em buracos mal recortados, deixavam ver todos os azuis e esverdeados, dos mais diferentes matizados. Se tivesse uma daquelas infindáveis colecções de pastel, ou de lápis, ou mesmo de gouaches, dentro dos acerejados, encarnados, tintos de vinho ou purpúreos, entre 60 ou 70 variações, não encontraria o tom exacto de cada cor que o crepúsculo projectava naquelas núvens. Os cabos do tabuleiro da ponte do Guadiana, enquadrados naquelas cores, penduraram um cenário. A fronteira do país dos sonhos.
Fish*. Longe vão as noites em que bebia copos no varandim do primero andar do Bananas, enquanto via a projecçção do video de Phill Collins à bateria, numa conhecida sessão de quase intermináveis batidas. O mesmo video também era passado no Whisppers e em outras discotecas. Supostamente, tinha acabado de ser trazido para Portugal pelo P.B.. Praticamente na mesma altura, bem no início da década de 80, os Genesis, mas também os Rush e os Yes, atingiram elevados níveis de popularidade. Numa onda diferente, estavam os TRB, que marcavam a «linha dura» da altura, embora num alinhamento diferente das coisas editadas pela Stiff Records (que tinha o mote «If It Aint Stiff It Aint Worth a Fuck»). Os da Stiff eram, entre outros, o Ian Dury (& The Blockheads), os Madness e a Lene Lovich. Ainda longe da queda do muro de Berlim, os Pink Floyd anteciparam a sua melhor fase de sempre. Nesses tempos, o visionário escritor Tolkien lançou o livro Silmarillion, que acabou por inspirar toda uma geração dada a questões mais místicas e pouco fora do oculto. No meio dessa geração encontrou-se um jovem virado para a composição de temas quase indecifráveis, de seu nome artístico Fish. Em 1979, Fish e outros lançam o grupo musical Silmarillion, fortemente «colado» aos sons da altura - Pink Floyd, dos Genesis, dos Yes e dos Rush. O problema é que Tolkien não engraçou com a ideia e o nome da banda foi mesmo alterado para Marillion, sob pena deste novo grupo suportar consequências legais antipáticas se não o mudasse. Como todos os da minha geração, ouvi Marillion sem nunca ter entendido com plena certeza o conteúdo das prosas escritas por Fish. Há muita gente que assegura, com alguma picardia, que os Marillion seguiam a inspiração à letra, virando tudo do avesso -- desta forma evito tornar a coisa mais explícita!. Contudo, lá bem do fundo 'do mim', duvido que assim fosse, mas a verdade é que um dos casos mais conhecidos e invocados para exemplificar essa tese é o da passagem dos Marillion «divided we stand, together we rise», que em sentido inverso poderia ser escutada no tema «Hey You» dos Pink Floyd, do album da opera rock «The Wall», onde os Floyd dizem «together we stand, divided we fall». É certo que na altura os Floyd tiveram uma expressão quase «universal» e que, mesmo sem intencionalidade, Fish e os Marillion -- que, insisto, tinham nascido como Silmarillion --, acabariam inevitavelmente por ser influenciados pelos sons e letras dos Floyd, mas, sobretudo, mais pelas letras que pelos sons.
Convém não duvidar que, então, a influência geral dos Floyd era mesmo muito grande! Na altura em que todos ouviam o «Another Brick in the Wall» até à exaustão, houve adaptações regionais dos seus temas, sendo em Portugal frequente a que trocou a letra do «we don't need no...», pelo «atirei o pau ao gato...». Deixando a ironia de lado, não deixa de ser engraçado notar que hoje em dia há de facto um certo revivalismo de Marillion, e que deverá continuar a sentir-se em 2007, sobretudo na Holanda, onde estão programadas algumas manifestações de «solidariedade». Tornando a coisa ainda menos irónica, efectivamente a rapaziada de Port Zelande, perto da Haia (Den Hague) está a pensar fazer umas quantas coisas de 2 a 5 de Fevereiro. E não será uma iniciativa isolada. Haverá muitas outras. Quem entender na integra os textos de Fish explique porquê. E se for pelo som, já é uma boa razão!
* Ironia balofa escrita a 11 de Novembro de 2006
Contraste. Do Sablon à Grand Place, tudo sabe a Natal. O «tom» é dado pelo enorme pinheiro colocado ao meio da praça, ornamentado, de onde se soltam bolas de sabão que voam iluminadas por focos de luz. Os mesmos focos que percorrem os relevos esculpidos nas imponentes fachadas da principal praça de Bruxelas. O presépio ficou num dos topos. As crianças sorriem. E os adultos não largam os chocolates.
Há chuva e frio. E chineses, que agora parece terem substituído hordas de japoneses, copiando-lhes até o vício de fotografar tudo. Mesmo em frente à esquina do pequeno 'Manneken pis', lá está outra chocolataria chinesa.
A Comissão, o Berlaymont, ou melhor, o escritório do Barroso, já entrou no «countdown» para as férias de Natal. O edifício «legislador» da Europa prepara-se para recolher a casa. Deixa as gravatas e vai aquecer as mãos à lareira. Não muito longe, virado para a casa do Rei, o Parlamento fará o mesmo - embora não legisle. Como se diz, patrão fora, dia santo na loja.
Bem perto de Bruxelas, os 40 quilómetros do porto de Roterdão não mentem. Aí o trabalho não pára. 24 horas por dia. Faça sol (pouco) ou chuva (muita), Roterdão alimenta a Europa, a Rússia, e tudo o mais que se possa imaginar. A Holanda deve-lhe boa parte da sua força. Este porto é do Estado holandês (com uma pequena participação accionista da autarquia local) e assim dizem que vai continuar.
Anjo. Encontrei um «anjo» perdido.
Foi no «Contraponto»*. O papel já está alaranjado. Deve ter sido salmão, senão rosado. Data de Agosto de 1960, assinado por Mário Cesariny de Vasconcelos.
Na última folha tem uma súmula do «Prato do Diabo», deixando para o fim o «Crueldade Testicular O Que Será?!!!, por Luiz Pacheco (1$00) na altura já publicado, e uma lista de três trabalhos a publicar: «Ouro Número Quatro», textos de Cesariny, Luiz Pacheco e António Maria Lisboa; «Da Fraudulenta Justificação», por Luiz Pacheco; e, o terceiro, «Delfim da Costa defende Delfim da Costa e Vice-Versa».
*Folheto do género dos manifestos surrealistas escrito - dactilografado - por vários autores, entre eles MCV, António Maria Lisboa e Luiz Pacheco
Neste Contraponto - série fantasma -, «O Prato do Diabo» tem o poema de Cesariny «Passagem do Anti-Mundo Dante Aliguieri»
«O Amor que é só o amor é já o Inferno»
(...)
«Era quando o Inferno queria ser Inferno»
(...)
«O amor que é só amor é já o inferno?
Bandido.
Inferno é o amor do primeiro amor?
Vadio.
Vós que entrais perdei toda a esperança?
Gatuno.
§§§§§§§§
Primeiro segundo terceiro quarto quinto
ao homem dos elevadores o cuidado de prosseguir
mas que amplexo de homem poderá dividir
somar
subtrair
o amor seu amor todos os braços da esfinge?
Essa que quatro ao raiar da manhã
essa que dois ao longo do sol a pino
essa que três quando caía a noite
os passos voam no areal do tempo
O amor só amor é já o inferno
diz Dante
mas é o amor que é um fogo devorante
Não me refiro à prestação do calor
O pra baixo e pra cima também os êmbolos fazem
e todos os dias vêm navios ao mundo.
Refiro por exemplo a estrela sextavada
que há no corpo do rio que é o amante
é aí que o amor é um fogo devorante
§§§§§§§§
Aqui o limbo além o paraíso além o inferno.
Que cheiro a despegado, meu general.
Eu, todos os meus anjos vão juntos para a guerra.
Se falta algum é como faltar o chão.
M.C.V. Agosto, 1960

Outro «anjo», este, muito diferente, em «AZAZEL, ou o bode que está entre nós», de Delfim da Costa, o cangalheiro da cidade.
«Azazel está para os anos 30, como Jacob e o Anjo para os anos 50 e o Indesejado para os anos 40. É uma peça maldita, diz-se no Século de domingo, 11-1».
«Tragédia-buffa, dada por José-Augusto França no Teatro Nacional D. Maria II. Encenação de D. Sallette, que não se reprimiu para dar perfume de existencialismo cristão à dita buffa surrealista do José-Augusto. A acção parece passar-se nos bastidores do Teatro Nacional. Os efeitos de som a cargo do Dr. Tareco, que cumula esta espinhosa missão com a de ponto, claque, doutrinador de ideias que não chegam a vir na peça (C.N.C.) e contra-regra. O verdadeiro público desta tragédia não é o que ocupa a plateia do Nacional, mas o que está "por detrás da cortina" e que irá aparecendo à medida que a peça for desaparecendo».
I ACTO
(...)
«CAI O PANO E SOBE O FRANÇA»
II ACTO
(...)
«CAI O FRANÇA E SOBE O PANO»
III ACTO
(...)
«CAI TUDO MENOS O PANO»

domingo, 28 de outubro de 2007

Natal. «Os Três Reis Magos puseram-se a caminho, depois de terem enchido o depósito e tomado cada um a sua bica. Saíram da estação de serviço a abrir. A noite estava fria, como seria suposto, o que fez com que Gaspar, que ia a conduzir, aumentasse a temperatura do ar condicionado até aos 23 graus. Baltasar, que ia atrás, mesmo com o café, adormeceu. Belchior, à frente, começou a contar anedotas. Os dois partilhavam uma garrafa de Dão, que iam bebendo, enquanto ouviam Stones nas versões antigas. Tinham pela frente mais de 24 horas ao volante até encontrarem o casal que lhes ia pedir boleia. Olhavam as estrelas para se orientarem na noite. Entre as prendas, lá estavam os anéis da Cartier em ouro, o incenso comprado na White Company em Londres - apesar da acesa discussão entre Baltasar e Belchior sobre a mudança de fornecedor para o Flor de Lotus do Brasil - e a mirra, a tão querida 'Myrrha commifora abissynica' que continuava a ser trazida, há mais de dois mil anos, pelo mesmíssimo fornecedor, sempre com grande qualidade e excelente coloração rubra-alaranjada, garantindo os efeitos terapêuticos daquela resina. Volta e meia, Gaspar até colocava um pouco do pó de mirra na erva que sempre fumava no cachimbo de água, tal a paixão que tinha por mirra. O mesmo fornecedor da 'abissynica' incluía sempre no pacote uns magníficos cortes de seda, azul petróleo, e umas quantas imagens iconográficas polacas, que Gaspar coleccionava há milhares de anos. Já tinha 30524 ícones de elevadíssima qualidade na sua colecção. Desta vez, o fornecedor trouxe uma singular Santa Ekatrina e uma diferente Santa Silvia, mãe de São Gregório, o que foi Papa, nascido em Messina, na Sicília, da nobre família Octavia. O fornecedor já lhe tinha falado desta imagem, mas Gaspar não descansava enquanto não a visse porque estranhou que os ortodoxos fizessem imagens de santos católicos romanos. Um pretexto usado pelo fornecedor para lhe cobrar o triplo pela imagem».
Fechou o livro.
Apagou a luz superior e olhou pela vigia. Sobrevoava a zona de Belém. Era bem noite mas reconheceu as pequenas luzes locais. Empurrou as costas do seu assento o mais de conseguiu, enroscou-se na manta e tentou dormir porque ainda tinha muitas horas de voo até ao seu Destino. De manhã queria estar fresco. Ia passar o Natal a casa.
Caju. Os barcos seguiam com o convés quase a raiar a linha de água. Levavam tudo, desde galinhas a produtos de cosmética, destinados aos índios locais. O calor era sufocante e a maioria dos passageiros tentava dormitar nas redes, verdadeiros lugares deitados destas embarcações. Recordo o pôr-do-sol antes de chegar à ilha do Caju. Estava então ao lado de quem ia ao leme, na pequena divisão que concentrava os aparelhos e manómetros de comando deste autocarro fluvial, de onde gritava, estridente, uma rádio que, por mais estranho, não passou na altura nada de forró. Recordo bem que ouvi um dueto do Julio Iglesias com Sinatra, o I've lost you to the summer wind.
Setenta ilhas estão ali. No delta do Parnaíba. A «divisa» entre os Estados do Piaui e do Maranhão. Espraiadas mar adentro, o que torna este delta raro - assim só há mais dois no mundo, um deles o do Mekong. E este é enorme. Muito grande. Como tudo naquele país-Continente. Da cidade de Parnaíba até ao meio do Delta, que é a Ilha do Caju, levam-se para cima de sete horas de navegação.
Antes de chegarmos, não me esqueço que a cor do final do dia se arrastou por uma eternidade. Foi talvez o ocaso mais prolongado que recordo ter presenciado. A água revolta e de tons castanhos transformou-se com os reflexos dourados, vermelhos, acobreados, roxos, lilases e por fim, afogados no azulado na noite. À medida que o delta ficou escuro, o céu acendeu estrelas, com o resto dos tons a puxarem o laranja, lá ao longe, do lado de terra, onde o sol equatorial tinha desaparecido. Quando o barco atracou, o ruído do motor foi imediatamente substituído pelas vozes das pessoas que queriam desembarcar. Acho que quando pus os pés em terra, na ilha das coloridas revoadas vermelhas dos guarás, da invasão de pererecas, dos tatus, das ostras e dos peixes gigantes - onde os jesuítas portugueses fixaram uma das suas primeiras missões -, naquele preciso momento, a minha vida mudou. Foi aí o princípio do tudo ao contrário.
Corvos. Não esqueço a memória do casario visto da marquise. Dos telhados com gatos. Nem, muito menos, do cheiro dos bifes cozinhados em banha e manteiga, barrados com mostarda de Dijon, como só a Amélia sabia fazer, acompanhados com puré de batata e esparregado. Nesse tempo - não teria mais de cinco anos -, ainda havia carvoeiros em Lisboa, e quase todos eram negócios passados em família - de avós para filhos e depois netos - cujas origens invariavelmente eram galegas. Uns tinham loros de Angola à porta, presos por uma anilha a um cordão metálico. Outros, corvos - e lembro-me de um muito grande.
Entre loros e corvos, não sei quais deles falariam mais. Lembro-me de um corvo com bons dotes vocais. Desconheço se todos farão o mesmo, mas aquele dava largas à sua voz. Era pesado, pouco ágil. Dava saltos nada graciosos. Para mim, era o símbolo da loja. Lembro-me bem dele, nem sei como, porque passei por lá poucas vezes. Sempre pela mão da Amélia – que recordo com tanto carinho, a mesma mão que também me levou ao leite, em Cacela, a que iamos com duas vasilhas para onde se mungiam as vacas.
Em poucas decadas perdeu-se essa Lisboa que ainda conheci. Já quase não há leitarias. E carvoarias, nem sei.
Mas os corvos de Lisboa entraram há muito tempo na nossa vida. Encarregaram-se de trazer o espanhol Vicente, dizem, que por isso ficou padroeiro. São corvos comuns. Corax. Mas há-os por todo o lado. A prova da sua universalidade é dada pelo nome da constelação existente sobre a linha equatorial.
São pássaros iguais aos outros, mas grandes. Da família corvidae. Neste caso a designação família é mesmo muito lata porque são bichos organizados em bandos, que obedecem a ordens, formam agregados e vivem geralmente em casais, tendencialmente conservadores e estáveis nas suas relações. Há ornitólogos que juram ser os corvos monogâmicos. Comem de tudo e se for necessário são necrófagos. São das poucas aves grandes que usam utensílios e diversos expedientes para comer. Contam-se inúmeros casos em que colocam cascas e nozes nas estradas para que o rodado das viaturas as partam permitindo-lhes a posterior comezaina. São, portanto, bichos inteligentes.
Comum à Europa e América do Norte, o Corax encontra-se por todo o lado. Na América do Sul é mais refinado. Chamam-lhe a gralha azul. Até a plumagem é mais cativante. Atendendo à colonização destas vastas zonas, se confirmados os dotes vocais e o psitacismo destes bichos, é natural que digam coisas em inglês, com sotaque de ambos os lados do Atlântico, em castelhano e nas suas variações latino-americanas, francês e italiano. Excluo o alemão e o japonês porque são pouco dados a estas coisas.
Kyoto. Traição, vingança, conspiração, sequestros e raptos, subjugação, incêndios e guerras. A Tragédia do Destino. Uma minúscula "passagem" da História do Japão. A do seu Ditador Yoritomo (1147-1199), contada no Heiji Monogatari, uma obra que tem sido atribuída ao nobre Hamuro Tokinaga - 36 capítulos distribuídos por três partes.

Trata-se de uma História incendiada pela beleza. Chamava-se Tokiwa Gozen - a concubina de Minamoto-no-Yoshitomo, opositor ao Imperador -, que Taira-no-Kiyomori, senhor plenipotenciário da Guerra Civil daquela época, não conseguiu matar, rendido ao seu encanto. Tornou-a, em vez, sua concubina, o que se saldou pela misericórdia aos três filhos dela, que foram enviados para conventos budistas. Eis a génese do Ditador. E já se perceberá porquê.

Pouco depois do Imperador Go Shirakawa (1156-1165) ter abdicado a favor do seu filho Nijo (na Época Heiji), então com 16 anos, estoirou a Tragédia. Tudo começou por uma inveja palaciana, alimentada por um misto de quebra de confiança e destrate. O Conselheiro de Estado e Ministro da Polícia, Fujiwara-no-Nobuyori (1133-1159), preparou uma estratégia para chegar a cargos mais ambiciosos, criando aliados para alicerçar uma proposta ao Imperador, supostamente irrecusável porque era suportada por figuras fortes. Apresentado o pedido ao Imperador, Nijo aconselhou-se junto do seu estratega e confidente Fujiwara-no-Michinori e, depois, negou liminarmente o pedido a Nobuyori.

Nobuyori não perdeu tempo. Iniciou logo um périplo de contactos para conspirar contra Nijo. Aliou-se nesse propósito ao poderoso Senhor Minamoto-no-Yoshitomo (1123-1160), conhecido o ódio visceral que Yoshitomo nutria contra Michinori, pois este infligira-lhe a suprema humilhação de recusar a mão da sua filha em casamento com o filho de Yoshitomo. O objectivo de Nobuyori era derrubar o poderio de Kiyomori, que odiava ainda mais por ter sido responsável pela morte do seu pai na Guerra da Época Hogen.

Kiyomori e Michinori, apoiando o Imperador, são confrontados com uma rebelião movida por Nobuyori e Yoshitomo. O golpe decisivo ocorreu na ausência de Kiyomori, que facilitou um assalto ao Palácio Imperial de Kyoto - totalmente incendiado -, consumando o sequestro de Nijo e do seu pai Shirakawa e ainda o assassinato de Michinori.

Urgentemente, Kiyomori regressou a Kyoto e incumbiu o seu próprio filho de travar a revolta. A acção foi implacável e Nobuyori feito preso e decapitado. Yoshimoto resistiu, travando uma feroz batalha, mas acabou por bater em retirada. Não teve sorte porque um assassino a soldo matou-o. E em seguida, decepou-lhe a cabeça e enviou-a para Kyoto, comprovando a execução do seu serviço.

É aqui que se retoma a questão da beleza. A concubina de Yoshimoto, Tokiwa, e os seus três filhos ficaram sob ordem de morte. Kiyomori fê-la apresentar-se perante ele. E ela foi. Mas a sua imensa perfeição, formosura e primor arrasaram-no. Kiyomori ficou com Tokiwa. E enviou os seus três filhos para conventos vigiados. Mais tarde, foram esses três filhos de Yoshimoto, já homens, que cumpriram a vingança do nome paterno. Depois de exterminarem todos os Taira, incluíndo Kiyomori, um desses três irmãos, Yoritomo (1147-1199), tomou o poder e declarou-se Ditador do Japão.