Corvos. Não esqueço a memória do casario visto da marquise. Dos telhados com gatos. Nem, muito menos, do cheiro dos bifes cozinhados em banha e manteiga, barrados com mostarda de Dijon, como só a Amélia sabia fazer, acompanhados com puré de batata e esparregado. Nesse tempo - não teria mais de cinco anos -, ainda havia carvoeiros em Lisboa, e quase todos eram negócios passados em família - de avós para filhos e depois netos - cujas origens invariavelmente eram galegas. Uns tinham loros de Angola à porta, presos por uma anilha a um cordão metálico. Outros, corvos - e lembro-me de um muito grande.
Entre loros e corvos, não sei quais deles falariam mais. Lembro-me de um corvo com bons dotes vocais. Desconheço se todos farão o mesmo, mas aquele dava largas à sua voz. Era pesado, pouco ágil. Dava saltos nada graciosos. Para mim, era o símbolo da loja. Lembro-me bem dele, nem sei como, porque passei por lá poucas vezes. Sempre pela mão da Amélia – que recordo com tanto carinho, a mesma mão que também me levou ao leite, em Cacela, a que iamos com duas vasilhas para onde se mungiam as vacas.
Em poucas decadas perdeu-se essa Lisboa que ainda conheci. Já quase não há leitarias. E carvoarias, nem sei.
Mas os corvos de Lisboa entraram há muito tempo na nossa vida. Encarregaram-se de trazer o espanhol Vicente, dizem, que por isso ficou padroeiro. São corvos comuns. Corax. Mas há-os por todo o lado. A prova da sua universalidade é dada pelo nome da constelação existente sobre a linha equatorial.
São pássaros iguais aos outros, mas grandes. Da família corvidae. Neste caso a designação família é mesmo muito lata porque são bichos organizados em bandos, que obedecem a ordens, formam agregados e vivem geralmente em casais, tendencialmente conservadores e estáveis nas suas relações. Há ornitólogos que juram ser os corvos monogâmicos. Comem de tudo e se for necessário são necrófagos. São das poucas aves grandes que usam utensílios e diversos expedientes para comer. Contam-se inúmeros casos em que colocam cascas e nozes nas estradas para que o rodado das viaturas as partam permitindo-lhes a posterior comezaina. São, portanto, bichos inteligentes.
Comum à Europa e América do Norte, o Corax encontra-se por todo o lado. Na América do Sul é mais refinado. Chamam-lhe a gralha azul. Até a plumagem é mais cativante. Atendendo à colonização destas vastas zonas, se confirmados os dotes vocais e o psitacismo destes bichos, é natural que digam coisas em inglês, com sotaque de ambos os lados do Atlântico, em castelhano e nas suas variações latino-americanas, francês e italiano. Excluo o alemão e o japonês porque são pouco dados a estas coisas.
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